Embora não possamos nos aprofundar o quanto gostaríamos no contexto e mentalidades da época, nos interessamos em seguir com Soares[5] na observação de que Arquéstrato teria sido mal interpretado por “uma abordagem preconceituosa de sua obra, baseada em juízos formados previamente por terceiros”. Ainda que os fragmentos disponíveis de sua obra sobre a culinária da Magna Grécia tenham sobrevivido mediados pela de Ateneu, esses, ao serem analisados com muito cuidado por Soares, mostram, por um lado, “um padrão de requinte gastronômico”, contando com uma vasta variedade de ingredientes para condimentar um mesmo prato. Por outro, os condimentos, não raro, foram referidos por Arquéstrato com o intuito de evitar “a intensidade de temperos”, preservando, assim, o gosto natural dos seus produtos principais[6]. Logo, conclui Soares, Arquéstrato não só buscava a moderação de temperos, mas o comedimento em todas as etapas do Convívio: desde o número de comensais, a quantidade de serviços oferecidos até as técnicas de preparo.
Partindo deste breve relato da antiguidade, percebemos como a representação da gastronomia como uma prática das elites foi reforçada por escritores e pensadores da aristocracia como, para citar dois, Brillat Savarin (1755-1826) ou Grimod de La Reynière (1758-1837). Nessas representações encontramos um estreitamento do seu conceito às questões de distinção social, quando, na verdade, a gastronomia é viva, cíclica e popular. Alimentos que no passado foram considerados pouco valorosos e foram evitados, podem perfeitamente retornar ao nosso convívio e se popularizar.
Aproveitando o ensejo, passamos a analisar o termo popular. Seus sentidos e significados também são antigos: podem significar algo admirado, apreciado e querido; ainda o que é famoso, célebre e renomado ou as coisas simples, baratas e acessíveis economicamente. Tudo isso parece nos aproximar de um outro conceito: o de “baixa gastronomia”; mas isso é só uma aparência. Numa revisão da formação deste último conceito, Ferreira, Valduga e Bahl[7], identificam o termo “popular” associado à baixa gastronomia apenas como uma entre suas características que, segundo esses autores, é uma expressão para comidas, evidentemente não luxuosas, mas que valorizam os locais de encontro, garantem sociabilidade e informalidade no sentido de ambientes descontraídos e hospitaleiros. Para tanto, citam o buteco e sua “culinária simples […] que se refere à culinária de raízes populares”. Percebam que Gastronomia Popular não significa “baixa gastronomia”, também não estaria em oposição ao sentido luxuoso da gastronomia. As diferenças entre “baixa gastronomia” e “gastronomia popular” são encontradas em vários aspectos. Os pratos populares, por exemplo, não são necessariamente simples, podendo ser até bastante laboriosos. Outro ponto é que a hospitalidade pode estar em todos os estilos gastronômicos. Ainda, os locais de gastronomia luxuosa podem oferecer comidas despretensiosas. Assim, a ideia de “popular” que desejamos usar pode, na verdade, tangenciar os seus próprios significados como veremos adiante. Raymond Williams, explica que o termo tem sua origem no século XVI no âmbito político e jurídico de “ação popular como ação política com todo povo, de base”.
O significado trazido por Collier, em 1697, define “popular” como método de “cortejar o favor do povo por práticas inapropriadas”[8]. Uma mudança de sentido ocorreu no século 19, quando popular foi considerado sob o ponto de vista do povo e não daqueles que buscavam favor ou poder do mesmo. Mas os sentidos anteriores não morreram, diz Williams. De acordo com ele, o conceito de cultura popular não era identificado pelo povo, mas pelos outros – a alteridade e a diferença -, e carregava dois sentidos: 1) tipos de trabalhos inferiores – distintos da imprensa de qualidade, por exemplo – e 2) trabalhos literalmente realizados para ganhar favores (tal como o jornalismo popular; o entretenimento popular). Só mais tarde chegou-se ao senso mais moderno de “apreciado por muitas pessoas”, sendo que os significados antigos foram sobrepostos aqui. Essa gama de sentidos pode ser observada no termo popularizar, que até o século XIX era um vocábulo político, quando então assumiu o seu significado especial de apresentar o conhecimento de formas geralmente acessíveis. Esse entendimento de representar o interesse e os valores populares, nos interessa. Imaginamos a Gastronomia Popular como um campo extenso, bastante abrangente, inclusivo, transdisciplinar, sendo capaz de produzir novos saberes, sobretudo, se considerarmos o ensino em Gastronomia que é potencialmente atravessado por tantos e variados campos de conhecimentos. Com isso, acrescentamos ao termo um lugar de luta e resistência. De questionamentos tais como: Podemos ter comida para todos, comida agroecológica, que respeita a floresta, os agricultores familiares, os povos e pessoas vulneráveis? Quais são os limites e potenciais de pensar a Gastronomia na qualidade de conhecimentos intercambiáveis, em constante transformação, não apenas exclusivos ou em posições fixas ou universais? Diferentemente de buscar por categorizações, gostaríamos de propor com um tema tão abrangente discutir a Gastronomia que se populariza e se torna popular no Brasil no passado e no presente. Gostaríamos de conversar com quem vem pensando novas perspectivas voltadas para uma gastronomia para todos, tornada popular.
[1] SOARES, Carmen. Cozinha simples, mesa farta: os requintes da gastronomia grega antiga (Arquéstrato, séc. IV a.C.) In: PINHEIRO, Joaquim e SOARES, Carmen (Coords.). Patrimônios Alimentares de Aquém e Além-Mar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume. 2016, p. 479-498.
[2] Ibidem, 2016, p.485.
[3] Ibidem, 2016, p.484.
[4] ARQUÉSTRATO. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Arqu%C3%A9strato# >. Acesso em: out. 2021.
[5] SOARES, 2016, p.484
[6] Ibidem, 2016, p.485.
[7] FERREIRA, R. Marina; VALDUGA, Vander; BAHL, Miguel. A baixa gastronomia sob o enfoque acadêmico. In: ANPTUR – XI Seminário da Associação Nacional Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo, 24 a 26 de setembro, 2014, p. 9.
[8] WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. London: FontanaPress, 1988, p. 237.
Por Myriam Melchior, coordenadora do evento.