Quando Gilberto Freyre publicou Assucar: algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do nordeste, ele teria, como nos conta Maria Leticia Cavalcanti, “escandalizado uma elite conservadora”. Nos anos 1930, não se esperava que um acadêmico como Freyre recolhesse receitas da doçaria brasileira com o intuito de publicar um livro, pois a doçaria era, naquela época, um assunto para as mulheres. Não que Freyre pensasse que a doçaria fosse muito diferente disso, ao que, inclusive, ele fez questão de deixar registrado, ao longo do livro, o que era a sua percepção sobre a associação das mulheres com a culinária. Foi pensando assim que mencionou “não há povo feliz quando às mulheres falta a arte culinária” e também ao dedicar Assucar “às mulheres brasileiras”. Mas para além dessa discussão sobre os gêneros na culinária e na cozinha, este estudioso da brasilidade procurou “defender-se” das críticas de seus contemporâneos com um pensamento de Machado de Assis, que dizia: “a publicação de um manual de confeitaria só pode parecer vulgar a espíritos vulgares” (FREYRE. Prefacio à 3a edição, p.30) e, assim, procurou liberar a doçaria dos preconceitos da época que a consideravam distante dos interesses eruditos.
Hoje, todo esse esforço nos parece curioso. Existem centenas de livros de receitas sendo vendidos nas melhores livrarias e já não são novidades as publicações que tratam das receitas prediletas deste ou daquele autor, escritor ou artista. Ainda assim, o açúcar continua a ser um assunto socialmente importante. Não obstante, esta importância se direciona aos sensos e sentidos do risco que os açúcares representam à saúde e/ou à estética. Aliás, na história da alimentação nenhum produto culinário foi mais desejado e mais vilanizado do que o açúcar. Neste âmbito, encontramos discussões radicalmente polarizadas tais como as que chegam a falar sobre a letalidade deste alimento e aquelas que apontam para a sua valorização identitária e patrimonial dos seus diversos saberes e preparações artesanais.
Dada a importância deste alimento, dos seus produtos, transformações e matérias primas, nos domínios históricos, psicológicos, antropológicos, de suas memórias sociais e coletivas, bem como de sua presença nos rituais de hospitalidade, na formação de impérios e civilizações, também como alimento conforto ou coadjuvante no sistema capitalista, dentre tantos outros interesses, dedicamos o nosso III Encontro de Gastronomia, Cultura e Memória às discussões, apresentações e reflexões acerca dos amados e perigosos “açúcares”.
Vale explicar que estamos considerando dentro do termo genérico “açúcares” todos os produtos culinários dos principais carboidratos cristalizados como a sacarose, a lactose e a frutose ou, ainda, os seus extratos ou xaropes. Também as diferentes apresentações da sacarose – o açúcar refinado, cristal, glaçúcar, xaropes simples ou o xarope invertido etc. – e o mel, a beterraba e o milho: com os seus produtos e subprodutos. Por fim, serão aceitos para debates trabalhos que discutam as matérias primas, os produtos culinários (obviamente a doçaria) e as bebidas (em todas as suas versões) contendo um ou mais tipos de açúcares como ingrediente. Enfim, qualquer temática que aborde o fenômeno açúcar/açúcares será muito bem vinda ao nosso encontro de 2018.